quinta-feira, 24 de março de 2011

84. Porfírio Pires

"o boi do pobo"
aguarela sobre tela
100 x 80 cm
2009

“O Boi do Povo”

No agreste planalto do Barroso foi-se seleccionando uma raça: o boi barrosão. Animal de trabalho, puxando os carros com feno, centeio ou lenha, ainda sacos de batatas; também o arado ou a charrua. Animal de parca alimentação, de crescimento lento, pouca carne e pouca produção de leite, grande cornadura em lira, mas robusto e de facto adaptado às condições climáticas, de alimentação e de funções: força de arrasto notória.
Companheiro do dia a dia das gentes do povoado, solto nas serras quando os trabalhos agrícolas se interrompem; conduzidos em vezeira à povoação que o Inverno já se anuncia.
Entre eles figura o boi de cobrição, o único boi inteiro da aldeia, com vida à parte, pastando na companhia de um vitelo e de uma vaca ou outra. “Côrte” só para ele! A sua função é tão-somente procriar. Mas mais: tem que demonstrar e sua valentia perante os congéneres de outras povoações. Ele pertence a todos e está-lhe cometida a defesa da honra viril do povoado, quando posto frente a um rival.
Das complicadas negociações entre os representantes enviados resulta normalmente que o encontro, bem ponderado o percurso, se dá a meio caminho e a notícia corre célere por todas as redondezas: “a chega” é lá, no lameiro junto do moinho.
O “Boi do Povo” chega na sua passada lenta e imponente no seu peso de tonelada. Deixam-no repousar, touçar aqui e além, farejar os ares, bruar agressivo que por detrás do carvalhal além já se houve igual sinal daquele que vai ser o contendor.
A “chega” que acontece é uma luta de pesos colocados todos na cornadura e firmeza nas patas, tonelada de cada lado, galhos esgrimindo à procura de uma aberta; luta determinada pelos instintos de procriação, sobrevivência do mais apto, a defesa da espécie. Luta franca, por vezes extremamente breve, outras durando alguns minutos em que aquele que vence pouco persegue o derrotado, que a função está cumprida: afastá-lo. O derrotado, esse pode passar de animal endeusado a gladiador vencido e por julgamento do povo não terá mais lutas, que a honra da aldeia foi posta em causa. É assim entre eles os “boi do povo”.
De mesmo não é entre as gentes das aldeias, que por entre trocas de razões, muitas vezes chegam aos argumentos do varapau com aguilhão, sachos e foices. E regressam à aldeia em cortejo triunfal, contando todos os pormenores de aquele acontecimento único, que será lembrado anos a fio em cada pretexto.

Esta história, no que se refere ao clímax intenso de uma “chega” no sentir colectivo do povo, perdeu validade.
A agricultura faliu por estes lados e a pouca que resta mecanizou-se. As aldeias comunitárias esvaziaram-se e o “povo” já não tem “boi” que demonstre a força, a valentia do colectivo, talvez porque este, o colectivo de uma sociedade restrita, já não tem lugar.

As “chegas” em Barroso continuam e até começam a ser exportadas para zonas limítrofes. Mas são espectáculos normalizados, produzidos em série no “chegódromo” (!!!) na presença do Sr. Presidente e seus convidados vindos da cidade e são entre o boi do Fulano e o do Sicrano, transportados em camioneta, ambos pagos convenientemente.
Mudança nos usos ou a enorme vantagem de razões turísticas, monetárias que sejam, a possibilitarem a existência, hoje ainda, do boi barrosão? Mas já não são marcos existenciais na vivência colectiva, falados e falados até que a memória se perca.
Ele, o “boi” que já não é do “povo”, continua lento, possante na sua pelagem do intenso pôr-do-sol, cumprindo as funções ancestrais de afugentar os rivais que se mostrem com menor força, valentia mais dúbia. Continua a manter a permanência da raça dos melhores entre os melhores e adquiriu agora a carta de folheto turístico. Pode ser subsidiado.

Porfírio Alves Pires


 Porfírio Alves Pires, nasceu em Montalegre em 1944.Terminou a licenciatura em 1973 em Paris (CESAIPE). É encarregue das cadeiras de desenho no Atelier André Michel em Paris na primeira metade da década de 70.Ensina projecto e desenho na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, em Lisboa na década de 80.É crítico de arte no “Diário de Lisboa” de 86 até à sua extinção, e no “Diário Fim de Semana”.Expõe desenho e pintura a partir dos anos 60 e regularmente desde a década de 80.

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